O Impacto do Primeiro Contato na Evolução das Civilizações VIII

por Cássio Siqueira

Civilizações de Mesmo Tipo Kardashev

O corpo principal da produção de ficção científica que contempla fenômenos de Primeiro Contato ocorre entre civilizações que apesar de poderem ser muito diferentes, apresentam níveis de desenvolvimento tecnológico mais ou menos semelhantes.

Em “Apocalypto”, Mel Gibson mostra um relance de como seria um primeiro encontro desse tipo. Ambas as culturas estão muito aquém do Tipo I Kardashev, e não é possível dizer que uma cultura seja muito melhor do que a outra, apesar da evidente diferença no desenvolvimento tecnológico. Mas há características culturais (profecias associadas aos colonizadores) e biológicas (doenças e anticorpos) que determinaram um relacionamento extremamente desfavorável para uma delas (estima-se que apenas Hernán Cortés deva ser responsabilizado pela morte de 20 milhões de nativos americanos[18]), que acabou culminando na extinção de todas as culturas pré-colombianas, embora seja possível dizer que alguns poucos sobreviventes tenham tido sucesso em preservar algo de sua cultura.

Saltando agora mais de oitocentos anos para o futuro, no propositadamente otimista universo de “Star Trek” cada cultura valoriza diferentes aspectos sociais; temas como honra, filantropia e altruísmo, lucro, busca pelo conhecimento, religião, e outros que podem ser nomeados dependendo das culturas e dos episódios selecionados. Mas todos apresentam níveis mais ou menos equivalentes de armamentos e tecnologia de transportes, o que facilita a comunicação entre os representantes de cada civilização e que acaba por permitir uma melhor compreensão dos desejos, medos e anseios coletivos de cada espécie, assim como exemplos individuais na figura de seus embaixadores. Havendo boa vontade nas negociações nos eventos de Primeiro Contato, o relacionamento tenderá a gerar oportunidades de inovação que se manifestam na engenhosidade da proposta de soluções, ou até mesmo pela imitação e cópia de procedimentos que historicamente já tenham se mostrado bem sucedidos, mas aplicados em contextos diferentes.

Exemplos que me parecem especialmente bem construídos de alienígenas egoístas no universo de Roddenberry ocorrem principalmente nas figuras das raças Klingon e Romulana na série clássica, Dominium e Borg na Nova Geração e que, cada uma à sua maneira, deseja – ou necessita – impor sua vontade a todas as outras espécies do quadrante da galáxia. Como é de se esperar, em situações em que há a necessidade de convivência forçada, esse tipo de atitude não ajuda a evitar conflitos e o resultado disso é uma evolução forçada para todas as civilizações envolvidas à custa de muito sofrimento. 

Um relacionamento ainda mais radical de Primeiro Contato ocorre em “Alien”, de Ridley Scott. Para o xenomorfo, a raça humana é apenas um meio de reprodução, e parece não haver nada que possamos fazer para alterar isso. Penso que dificilmente esse tipo de relacionamento possa trazer qualquer impacto positivo no nível de evolução de qualquer dos envolvidos pela própria natureza fisiológica, orgânica (literalmente) das interações. É bastante provável que aqui o resultado será forçosamente a extinção de uma das duas raças envolvidas. Talvez das duas.

Note que no universo de “Alien” não nos é apresentada qualquer possibilidade de uma civilização de xenomorfos. Claro que há grupos organizados aqui e acolá, e claro que eles são extremamente inteligentes, mas não nos é mostrada qualquer organização social que possamos chamar de civilizada. De certa forma suas ações me fazem lembrar os grupos de velociraptores em “Jurassic Park”. Por essa característica o xenomorfo talvez deva ser excluído da discussão já que não busca a evolução conforme definida no início deste texto, ao contrário de todos os outros exemplos até aqui mencionados. Até porque… eles não têm nave. Se chegarem por aqui, será provavelmente como carga em uma nave dos engenheiros (uma das raças do universo de “Alien”, mas esse me parece mais um exemplo do próximo tópico). Xenomorfos são casca-grossa o suficiente para viverem sem tecnologia alguma, nesse aspecto lembrando bastante as criaturas do universo de H. P. Lovecraft com a ressalva de que estas podem sim ser consideradas não apenas civilizadas, mas detentoras de sofisticado conhecimento técnico, como mostra o conto “Um Sussurro nas Trevas”[19] (julgo que o conto oferece, até agora, o melhor exemplo de inovação de que tenho notícia na ficção científica, com a provável exceção do “Frankenstein” de Mary Shelly).

Nessa mesma linha encontra-se o alienígena em “The Thing”, de John Carpenter, que apesar de ter chegado ao planeta Terra exatamente da mesma forma que meu kriptoniano preferido, a forma de interação está muito mais para uma doença altamente infecciosa do que para uma saudável contribuição para as espécies de nosso planeta. Aqui talvez possamos discutir um pouco sobre os motivos que levariam civilizações a encerrar indivíduos em naves espaciais e enviá-las para nosso planeta:

1. Em Superman, Jor-El decide enviar seu filho para a Terra por dois motivos: salvá-lo da destruição do planeta e preservar a herança genética do condenado povo kriptoniano, talvez na esperança de que a Fortaleza da Solidão algum dia instrua Kal-El a mais tarde restaurar a glória de Kripton. Seus pais adotivos, Jonathan e Martha Kent, teriam tido papel determinante no comportamento de um Clark Kent justo, equilibrado, e muito consciente da fragilidade de todos que o rodeiam. Mas seria injusto omitir a contribuição de Jor-El em seu comportamento; seu pai biológico teria tido a intenção de prover seu filho apenas com os melhores exemplos de DNA kriptoniano de que pudesse dispor;
2. Outros kriptonianos chegaram à Terra, mas por meios diferentes. O general Zod e sua equipe eram rebeldes malfeitores, e se comportavam de acordo. Forças terráqueas encontravam-se em situação semelhante à dos bravos guerreiros da África setentrional em 1798 depois da invasão das forças de Napoleão[20]: nada podiam fazer além de observar.
3. Já no filme de John Carpenter, o desgarrado chega a nosso planeta em uma nave espacial e fica em um estado de hibernação – ou o equivalente disso – até ser descoberto por uma expedição científica (posso apenas imaginar sobre o que aconteceria se Jonathan e Martha Kent tivessem tido a oportunidade de conversar como esse outro alienígena). Especulo também a relação entre a origem dessa nave específica e a de seu ocupante:
1. Em um primeiro cenário, trata-se de uma viagem científica que deu errado, e seu ocupante, um pesquisador, seria um legítimo representante dessa raça alienígena. Se for esse o caso, seria melhor classificado como um evento de Primeiro Contato com Tipos Kardeshev contíguos, que analisaremos mais adiante. Confesso que a possibilidade de uma civilização de criaturas como aquela me parece um tanto sombria;
2. Pode também tratar-se de um segregado que, a exemplo do kriptoniano Zod, teria cometido crimes e sido sentenciado a uma nave-prisão que, de forma aleatória ou não, acabou caindo na Terra;
3. Ou ainda, outros alienígenas encontraram essa desagradável forma de vida, não gostaram dele, e tendo motivos desconhecidos para não eliminá-lo preferiram adotar a linha de ação já detalhada no parágrafo anterior. A pergunta que aqui resta é: seria essa uma ação de guerra biológica contra os terráqueos, semelhante àquela perpetrada pelos engenheiros em “Prometheus” (o filme que explica a origem dos xenomorfos de “Alien”)?

Até agora discorremos principalmente sobre os extremos que a ficção científica sugere para encontros de Primeiro Contato quando representantes de civilizações com aproximadamente o mesmo Tipo Kardashev se encontram. Para esses casos, acredito que valem as mesmas regras que utilizamos em qualquer negociação:

1. Entender o que o outro quer de mim;
2. Certificar-me sobre o que eu quero do outro;
3. Avaliar os “argumentos de persuasão” das partes envolvidas (capacidade bélica é um dos itens, mas não o único);
4. Estimar o tempo que durará a cooperação.

Já o caso dos desgarrados, acredito que sejam exceções, e que devam ser tratados como tal já que não representam civilizações, mas indivíduos isolados cujo comportamento pode não refletir o de sua sociedade, se houver uma.

Na próxima semana: Tipos Kardashev Contíguos

Notas

[18]
https://www.nucleodoconhecimento.com.br/historia/conquista-do-mexico em 10/09/2020

[19]
O texto traz a primeira referência que conheço sobre mecanismos tipo “mecha”. As definições variam, mas aqui trata-se de um invólucro capaz de receber o cérebro e o sistema nervoso central de um usuário. Consulte https://pt.wikipedia.org/wiki/Mecha (21/09/2020)

[20]
N. A.: Não só perceberam que suas espadas e lanças eram ineficazes contra o invasor – consulte a batalha contra os Mamelucos, em 12 de julho de 1798, e a Batalha das Pirâmides, em 21 do mesmo mês –, como também perceberam que os únicos capazes de combatê-los seriam outros invasores: as forças inglesas que vieram mais tarde – veja a Batalha do Nilo, a 1º de agosto daquele ano.