por Cássio Siqueira
Tipos Kardashev Contíguos
No universo original imaginado por Gene Roddenberry, “Star Trek” apresenta uma humanidade que já teria superado todas as suas dores, medos e aflições, restando apenas a busca pelo conhecimento e a propagação do bem pelas civilizações de nossa galáxia. Quando existe a necessidade de interação com civilizações menos adiantadas tecnologicamente, o autor imaginou uma Primeira Diretriz, que impediria a transferência de tecnologia sob o não muito claro pretexto de não interferência. Essa orientação permeia o universo “Star Trek”, e é mencionada em diversas oportunidades no decorrer de seus seriados, mas quero aqui destacar o episódio “A Private Little War” da série clássica.
Se invertermos os papéis e colocarmo-nos na posição de civilização menos avançada tecnologicamente, talvez devêssemos esperar esse mesmo comportamento de eventuais visitantes que porventura nos façam alguma visita; seu respeito ao nosso modo de vida poderia impedi-los de nos ensinar o que quer que fosse relacionado à tecnologia, e suas contribuições se dariam provavelmente muito mais no campo filosófico do que em qualquer outra área do conhecimento.
Em “Arrival”, Denis Villeneuve mostra as dificuldades de comunicação entre civilizações de Tipos Kardashev diferentes, contíguos ou separados talvez por até mais de um grau. Classifico aqui os humanos como egoístas não em sua totalidade, claro, mas apenas por reconhecer a necessidade que temos em manter segredo sobre coisas e fatos dos quais pensamos poder tirar proveito em um futuro próximo ou até nem tão próximo assim. Não seria injusto imaginar a existência de uma ânsia de diversos grupos por tecnologias que os ajudem a subjugar outros grupos.
Quanto aos alienígenas do filme, classifico-os como de boa fé pelo esforço que realizam no sentido de nos tornar melhores no decorrer do processo de comunicação, muito embora o filme não nos permita especular sobre seus motivos. Classifico esse relacionamento como positivo para as partes envolvidas: como qualquer professor, a civilização mais avançada mantém o controle do que deve ser ensinado, e a civilização aprendiz vai vagarosa e gradualmente modificando seus hábitos e lapidando suas ações. O aperfeiçoamento desse processo – o de transferência de conhecimento – faz-se necessário e é ostensivamente sujeito a debate, mais ou menos como no caso em que missionários evangelizam tribos de índios selvagens no interior do Amazonas. Em atitude não consensual e ainda aberta a muita polêmica, não poucos antropólogos diriam que a civilização mais adiantada deveria restringir seu contato ao mínimo necessário para resolver a emergência que tenha gerado a necessidade de intervenção, e nada mais. Talvez então, e apenas talvez, essa possa ser a linha de ação adotada por nossos visitantes. Por conta disso, não se pode duvidar – e nem comprovar – que um Primeiro Contato desse tipo já tenha acontecido, e talvez não saibamos disso porque teriam tido o bom senso de adotar o protocolo sugerido pelo hipotético antropólogo de nosso exemplo. E ainda, talvez um relacionamento entre as diferentes espécies tenha deixado de ocorrer simplesmente porque os ganhos não compensam os riscos.
Na refilmagem do clássico “O Dia em que a Terra Parou”, recebemos a visita de um embaixador solitário interessado em preservar a preciosa diversidade de vida em nosso planeta (o excelente original de 1951[21] preocupa-se com a corrida armamentista da Guerra Fria[22]). Mas a opção de um primeiro encontro público acabou gerando um ou outro contratempo. Como estava solitário, nosso benfeitor foi dominado e preso por nós, que teríamos cometido o erro de confundir solitário com indefeso. Na refilmagem de 2008[23], o personagem interpretado por Keanu Reeves nos dá um firme puxão de orelhas que não vou contar para não estragar o filme para quem ainda não o viu. Quanto ao que a humanidade teria aprendido com essa interação, digamos que se trata de uma lição que jamais esqueceríamos.
Mas e quando, ao contrário do exemplo anterior, a aparência é radicalmente diferente da nossa? Em “Galaxy Quest”, de Dean Parisot, uma improvavelmente boa comédia de ficção científica que nos apresenta alienígenas tecnologicamente muito mais avançados do que nós, estando pelo menos um grau Kardashev além no nosso. Estranhamente, sua engenhosidade é apenas superada por sua ingenuidade, uma proposta que contrasta radicalmente com o arquétipo de civilizações avançadas. Sua aparência é também bastante diferente, mas isso não impede o bom relacionamento com humanos e a associação em busca de um bem comum. Há nesse caso uma troca interessante, pois o aprendizado ocorre em via de mão-dupla.
No seriado americano “V”, os alienígenas estão muito cientes de que sua aparência não ajudará na consecução de seus objetivos. Atendendo aos apelos do maniqueísmo do qual frequentemente somos vítimas, o autor associa beleza à virtude e feiura ao mal, e faz seus personagens usarem disfarces humanos para facilitar sua relação com os terráqueos. Os benefícios prometidos em suas ofertas vão pouco a pouco cedendo espaço à desconfiança e gradualmente seus reais interesses em nosso planeta começam a ser revelados.
Já em “O Fim da Infância”, Arthur C. Clarke explora as consequências de uma aparência ainda mais prejudicial para a raça mais avançada. Ao contrário dos alienígenas de “Galaxy Quest” que eventualmente poderiam até conseguir aceitação de toda a população humana, os de “O Fim da Infância” jamais seriam aceitos pela maioria de nossa população. E mesmo entre os que os aceitassem, uma importante parcela os veria com fortes reservas, mesmo sendo suas intenções as melhores possíveis.
No caso de uma civilização avançada egoísta, podemos voltar ao exemplo do episódio “STO” “A Private Little War”, quando klingons oferecem armas cada vez mais sofisticadas a grupos que lhes sejam leais, à semelhança de diversos eventos ocorridos na vida real durante a Guerra Fria[24]. Ou, se preferirem, ao filme "Apocalypto". Ao desembarcarem nas Américas, europeus trocavam miçangas e espelhos por terras, matérias-primas, outros itens valorizados na Europa e, acima de tudo, por lealdade; assim como os klingons fizeram no episódio citado. Mas ao contrário daquela obra de ficção, penso que as coisas não acabaram bem para os nativos de qualquer colônia em nosso planeta salvo melhor juízo que, se manifestado, terei prazer em incluir neste texto.
Há teóricos de conspiração que citam com frequência a influência que alienígenas classificados como reptilianos teriam junto aos poderosos em nosso planeta. Segredos, artimanhas e conspirações seriam as ferramentas utilizadas por quaisquer indivíduos de má fé para a consecução de seus objetivos. Se estivermos nesse tipo de situação – um grande, enorme SE –, avalio que o objetivo seria o domínio mundial. Perceba, entretanto, que nesse caso não faz diferença de os perpetradores serem deste ou de outro mundo, o resultado prático seria o mesmo.
Uma situação completamente diferente é a daquela de uma nave dos engenheiros do universo de “Alien” chegar em nosso planeta trazendo uma carga de xenomorfos. E aqui, claro, não há negociação, e apenas um resultado deve ser esperado: a aniquilação total de uma das raças envolvidas. Trata-se de uma guerra biológica, afinal de contas. Infelizmente temos sim exemplos disso em nossa história: Shark Island[25] fica na costa da Namíbia, e foi o palco do genocídio[26] das etnias Herero e Namaqua por forças do Império Germânico entre 1904 e 1908. Os nativos não se curvaram aos desejos da civilização mais avançada tecnologicamente, e houve então a decisão de eliminá-los a todos. Faço aqui duas tristes reflexões sobre esse episódio: jamais saberemos que contribuições essas culturas extintas poderiam ter para o mundo; e que não se permitiram escravizar. Um evento desses só resulta em prejuízo para toda a comunidade humana, uma mácula a ser relembrada e para jamais ser repetida.
Agora voltando à nossa hipotética situação de Primeiro Contato, se a civilização for do tipo altruísta não temos nada a temer. Mas devemos estar bem preparados para negociações com civilizações egoístas, tendo a certeza de que a diferença entre o armamento terráqueo e o alienígena seja determinante para gerar boa vontade em ambas as partes.
Na próxima semana: Dois ou mais graus Kardashev de separação
Notas
[21]
https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Dia_em_que_a_Terra_Parou_(1951) em 11/09/2020
[22]
https://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_Fria#:~:text=Guerra%20Fria%20foi%20um%20per%C3%ADodo,da%20Uni%C3%A3o%20Sovi%C3%A9tica%20em%201991 em 07/09/2020
[23]
https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Dia_em_que_a_Terra_Parou_(2008) em 11/09/2020
[24]
O excelente Jogos do Poder, de Mike Nichols, nos dá um vislumbre dos bastidores do conflito no Afeganistão no final do século XX. https://pt.wikipedia.org/wiki/Charlie_Wilson%27s_War em 12/01/2021
[25]
https://en.wikipedia.org/wiki/Shark_Island_concentration_camp em 07/09/2020
[26]
N.A.: Como é bem sabido, e embora o recorde absoluto de mortes ainda pertença a Cortés, esse não é o único evento do tipo a ocorrer em nossa história recente, apesar de ser aquele em que as diferenças de desenvolvimento tecnológico se mostrem mais evidentes. Deve-se lembrar também do evento que cunhou o termo genocídio, o Medz Yeghern, ou o genocídio armênio, perpetrado pelo Império Otomano entre 1915 e 1923 e que vitimou entre 800 mil e 1,5 milhão de súditos armênios; o conhecidíssimo Holocausto judeu, no qual 6 milhões de judeus perderam a vida durante a Segunda Guerra Mundial sem contar outras vítimas como ciganos, poloneses, comunistas, homossexuais, prisioneiros de guerra soviéticos, Testemunhas de Jeová e deficientes físicos e mentais; e o recente genocídio de Ruanda, ocorrido entre os meses de abril e julho de 1994 contra a etnia tutsi e vitimando entre 500.000 e 1.000.000 de ruandeses.
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