O Impacto do Primeiro Contato na Evolução das Civilizações X

por Cássio Siqueira

Dois ou mais graus Kardashev de separação

Nossa civilização já se beneficia de relacionamentos dessa natureza, muito embora as criaturas com as quais tratamos dificilmente poderiam ser consideradas espécies civilizadas. Por exemplo, ao propiciarmos as condições ideais para a prosperidade de colônias de leveduras, conseguimos em troca itens como pão, cerveja, vinho, queijos, e até penicilina! Há diversos outros relacionamentos dessa espécie com outras criaturas, e nem sempre a vantagem recebida por elas gera retorno imediato ou claramente perceptível para nós; falo aqui das diversas entidades que exercem desde o resgate de animais de estimação abandonados até a luta pela preservação do meio ambiente, passando por indigenistas e por especialistas em vida selvagem. Como é fácil constatar a existência desse tipo de atitude desinteressada para com espécies menos complexas que a nossa própria – e apesar de esse tipo de ação contrariar a lógica comumente presente em qualquer negociação –, seria então possível especular sobre a possibilidade de civilizações de Tipos Kardashev mais avançados fazerem o mesmo por nós.

A primeira vez que vi uma estória sobre Contatos Imediatos desse tipo foi em “2001 – Uma Odisseia no Espaço”. Entendi muito pouco do filme quando o vi pela primeira vez, mas a compra do livro acabou por se mostrar determinante para o entendimento, pelo menos para mim. Passo então a compartilhar com vocês algumas poucas interpretações que venho coletando aqui e acolá (vídeos dos professores Michio Kako e David Kipping, artigos de internet e, de forma igualmente importante, conversas informais com membros da Base Estelar Campinas), e peço para o leitor que não veja neste texto nada definitivo em relação a essa interessante obra de Arthur C. Clarke e (por que não?) também de Stanley Kubrick. Nessa estória não recebemos a visita de qualquer nave espacial, embora haja não apenas um, mas três eventos de Contato com esses alienígenas (mais precisamente, com seus poderosos embaixadores automatizados). Quero apresentar algumas interpretações de minha parte:

  1. Esses alienígenas provavelmente são pelo menos uma civilização Tipo III.
  2. Durante o desenrolar tanto do livro como do filme, esses alienígenas nunca se mostram. Vimos apenas seus representantes, monólitos negros de dimensões 1 x 4 x 9 (os quadrados de 1, 2 e 3), em torno dos quais parece existir o consenso generalizado de que se tratam de sondas automatizadas.
  3. Esses alienígenas estão extintos ou não se manifestam em nosso universo. É possível extrapolar sobre sua não manifestação, e que até mesmo possam existir – ou ter existido – em outros universos ou no espaço entre eles. Se for esse o caso, essa civilização poderia ser – ou poderia ter sido – dos Tipos III, IV, V ou até mesmo VI.
  4. Seu objetivo não está claro, mas é possível especular que desejem preparar criaturas que sejam potencialmente capazes de receber o conhecimento por eles desenvolvido. Daí a necessidade de se fazer evoluir raças de criaturas que se mostrem adequadas. Mas… o que fazer com criaturas que já tenham sido modificadas, mas cuja linha de evolução demonstre que não são adequadas a seus propósitos?

Como a imensa separação de desenvolvimento entre as duas espécies inviabiliza qualquer forma de comunicação – além do fato de que esses alienígenas não se fazem presente no decorrer dos quatro livros da saga[27] –, nossa bem-intencionada civilização alienígena parte para a ação, lançando mão de sondas dotadas de capacidade de comunicação entre elas, provável inteligência artificial, e instrumentos de análise e interferência no corpo de criaturas, talvez até mesmo em nível de edição genética, o que acaba ocorrendo pelo menos duas vezes no decorrer dessa estória. Não tenho dúvidas de que ocorram comunicações em via de mão-dupla, mas penso que a enorme diferença evolutiva cobre o seu preço, mesmo tendo HAL[28] como intérprete. Vou dar um exemplo: se você tiver um animal de estimação, tente explicar-lhe seus boletos. Qual a razão de sua existência, porque se preocupar com a obrigação, quais os benefícios, o que acontece se nada for feito… Da mesma forma, parece-me que não seria nada efetivo para uma civilização avançada pousar sua nave em qualquer parte do planeta e anunciar para seus habitantes que eles devem evoluir para que no futuro seus descendentes sejam capazes de receber o conhecimento do universo. Aliás, acho que essa tática não funcionaria em lugar algum.

Voltando ao livro/filme, no evento de Primeiro Contato as sondas acabam identificando uma espécie que tem o potencial para cumprir o objetivo daquela avançada civilização, qualquer que seja esse propósito. Uma das sondas então desce, executa uma alteração naqueles indivíduos, e um deles acaba por desenvolver a habilidade de fazer uso de ferramentas. Uma segunda sonda é então enterrada na Lua, e instruída a: primeiro, aguardar; e segundo, a informar as demais caso essa espécie primitiva venha a desenvolver a capacidade de viagens espaciais. Como isso acaba acontecendo, uma segunda análise é realizada, e novamente um espécime do grupo é selecionado para receber novas alterações. Esse novo ser humano é então retornado ao planeta Terra mais consciente, mais capaz, com mais responsabilidades, e ainda assim livre para exercer seu livre arbítrio, podendo optar por ajudar (ou não ajudar) aqueles que algum dia foram seus semelhantes.

Livre arbítrio parece mesmo ter sido uma preocupação de Clarke ao escrever essa estória; os alienígenas aparentemente jamais interferem em planos humanos, e suas ações parecem ocorrer apenas quando se alcançam determinados marcos pré-estabelecidos. Apesar de a melhoria ter sido executada individualmente apenas em David Bowman, existe a sugestão de que essa civilização avançada pretenda fazer evoluir coletivamente toda a raça humana não de forma direta, mas através do astronauta modificado.

Fora da ficção, penso que o contato entre civilizações tão diferentes só ocorreria em casos de necessidade, como naquele já mencionado caso de encontros com tribos indígenas isoladas. Clarke imaginou uma necessidade para a civilização avançada – talvez, o desejo de transmitir seu legado de conhecimento – o que justificaria as interferências na velocidade e no direcionamento da evolução das raças-candidatas. Por outro lado, pode ser que nós estejamos para eles como as leveduras estão para nós, e talvez o propósito da iniciativa de entrar em contato conosco seja apenas o de ajudá-los a fabricar uma cerveja melhor. A possibilidade é um duro golpe para mim, já que minha vaidade sempre me levou a acreditar que a raça humana está destinada a grandes realizações, mas penso que não há muito que negociar nessa situação, e a nós caberia apenas o papel de coadjuvantes em nossa própria história, embora os benefícios pareçam-me inegáveis.

Na próxima semana: Humanidade adolescente

Notas

[27]
N.A.: 2001 A Space Odyssey; 2010: Odyssey Two; 2061: Odyssey Three; 3001: The Final Odyssey

[28]
HAL – a notável Inteligência Artificial que controla a nave da expedição científica – desenvolve um comportamento extremo como consequência de ordens conflitantes que recebeu antes do início de sua viagem.

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